quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Direito de indignação numa sociedade democrática, disseram os juízes.


O processo é simples, mas conseguiram transformá-lo num processo kafkiano. Os arguidos eram estudantes, com vinte anos ou pouco mais ou até menos. Foram expulsos da Assembleia da República, por ordem de Jaime Gama, estiveram três anos como arguidos, com termo de identidade e residência, com deslocações constantes para prestarem declarações à polícia,ao juiz de instrução criminal, por vezes em alturas de avaliações. Chegou a marcar-se um julgamento em que o juiz se declarou incompetente e, por fim, o julgamento foi efectuado na 2ª Vara Criminal de Lisboa. Valeu, no final, o bom senso dos três juízes e do Ministério Público, que mais parecia o advogado destes estudantes.
Nem todos foram pronunciados. Dos mais de trinta que foram arrolados, pelo menos uns vinte pagaram cem euros a uma instituição e, por isso, livraram-se deste processo. Houve quem fosse à Assembleia da República, exercendo apenas o seu direito de cidadão, sem qualquer manifestação; por estar um minuto neste lugar esteve três anos metido nesta confusão que, Jaime Gama, como presidente, achou por bem dar como exemplo.
No mesmo dia, de seguida, na mesma vara do tribunal,estando presentes os arguidos dos dois processos, foi lido também o acórdão do "gang do multibanco", os quais também devem ter achado este processo surrealista.
Assim se perde o tempo, dos estudantes, dos polícias, dos juízes, das famílias. Assim se deu o pior exemplo do que é a perversão do Estado Democrático, que há-de continuar, apesar disto, ou destas pessoas que já deveriam procurar outro lugar em vez de empatar os cidadãos.

Extractos do acórdão (sublinhados nossos.

2. ª Vara Criminal de Lisboa
Acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo da 2a Vara Criminal de Lisboa.
Foi proferido despacho de pronúncia contra os arguidos:
1- […], natural de Setúbal,
2-[…], solteiro, estudante, residente […] Évora;
3-[…] solteiro, estudante, residente […], Queluz;
4-[…] solteira, desempregada, […]Lisboa;
5- […], solteiro, bolseiro de investigação, residente […] Lisboa;
6-[…] solteiro, assistente de comunicação, residente na […]Amadora;
7-[…]solteira, estudante, residente […]Setúbal;
8-[…] solteira, estudante, residente na […]Amadora;
9-[…] solteiro, estudante, residente […]Rio Tinto .
Imputando-lhes a prática, em autoria material, de um crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional p e p, à data dos factos, pelo art. 334° al. a), do CP, em conjugação com o art. 333° n° 1, do mesmo diploma e actualmente p e p pelo art. 33° nº 1 do CP
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto provada
1- No dia 28 de Junho de 2007, pelas 18h00, decorria uma sessão plenária da Assembleia da República onde se discutia o regime jurídico das instituições de ensino superior;
2- Os arguidos, na qualidade de cidadãos, assistiram à sessão na Galeria VI da assembleia.
3- Para além dos arguidos, na mesma galeria, encontravam-se mais 22 pessoas;
4- No final da votação, algumas pessoas da Galeria VI, insurgiram-se contra o resultado da votação, pondo-se de pé e gritando: «privatização não»; «não à privatização do ensino»; «Não»; «não»; «não à privatização», ao mesmo tempo que gesticulavam;
5- Em consequência disso, os trabalhos parlamentares foram interrompidos por breves instantes, tendo o Presidente da Assembleia da República ordenado aos agentes da PSP que procedessem à retida imediata das pessoas que se encontravam na galeria;
6- A intervenção dos agentes da PSP demorou cerca de 1 minuto após o que o parlamento retomou os seus trabalhos;
7- Os arguidos não têm antecedentes criminais.
2.2. Factos não provados
1- Os arguidos faziam parte do mesmo grupo juntamente com as restantes pessoas da galeria VI;
2- Os arguidos, no final da votação, insurgiram-se contra o resultado da mesma, pondo-se de pé e gritando […] ao mesmo tempo que gesticulavam;
3- Os arguidos sabiam e quiseram perturbar, como perturbaram, o funcionamento da Assembleia da República […];
4- Agiram de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

2.3 Motivação da Decisão de Facto

[…] No que diz respeito aos factos não provados a decisão do tribunal resultou do facto dos arguidos […] que negaram terem proferido palavras de ordem ou gritado, bem como no facto das testemunhas acima referidas, não terem conseguido identificar nenhum dos arguidos como sendo uma das pessoas que gritaram.

Enquadramento jurídico-penal

Dispõe o artigo 334° nº 1 do CP que «quem, com tumultos, desordens ou vozearias, perturbar ilegitimamente:
a) O funcionamento de órgão referido no nº 1 ou no nº 2 do artigo anterior, não sendo seu membro, e punido, respectivamente, com pena de prisão até 3 anos, ou com pena de prisão até um ano.
[…]
Tendo em conta os factos provados facilmente se conclui que os elementos do crime não se mostram demonstrados. Na verdade, não ficou provado que os arguidos tivessem praticado alguma conduta susceptível de ser enquadrada coma tumulto, desordens ou vozearias o que afasta, desde logo, o elemento objectivo do crime.
Porém, mesmo que tivesse ficado demonstrado que os arguidos tivessem proferido as palavras dadas como assentes nas condições descritas na acusação ainda assim, a conduta não era susceptível de integrar o tipo legal de crime, na medida em que estaríamos perante o exercício legítimo do direito à indignação perfeitamente concebível numa cultura democrática.
Dispositivo
Tudo visto e ponderado, acordam os membros deste Tribunal Colectivo em julgar a pronúncia improcedente e, em consequência, absolver os arguidos […]

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