quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Misticismos e mitos fundadores nas Astúrias


O reino das Astúrias foi o primeiro reino da chamada reconquista cristão face ao poder islâmico. Entraram facilmente os muçulmanos em 711 na Península (a Hispania ou as Espanhas) e até com apoios locais ou pelo menos com a aquiescência de muitos povos que preferiram o poder dos novos senhores menos opressivos que os descendentes dos visigodos em guerras civis constantes. Afinal, estes novos senhores nem sequer eram assim tão estranhos pois quando aqui chegaram eram herdeiros e continuadores das culturas e civilizações do Mediterrâneo, de vastos territórios do Império Romano, cristianizados antes, como a Síria (recordemos o grande impulsionador do cristianismo, S. Paulo que se converteu na estrada de Damasco), Palestina, Egipto e restante Norte de África, por sua vez herdeiros da cultura helenística e de outras mais antigas que se foram mesclando. Linguagens e saberes, formas de estar comuns à maioria da Península, com algumas excepções como as montanhas do Norte, onde até hoje resistiram línguas milenares como o basco. Erroneamente chamam-lhes árabes, tomando a parte pelo todo, pois que muitos eram de outras partes do novo império, sírios por exemplo ou mouros berberes do Magrebe, muitos recentemente convertidos, passando directamente do cristianismo (monofisita em particular) para o islamismo.

   A civilização islâmica era essencialmente de cariz urbano e comercial, com uma agricultura e artesanato inovadores direccionados essencialmente para o mercado. Por isso, a esses novos senhores interessavam sobretudo as cidades do Sul, os terrenos agrícolas onde antes havia villae romanas ou alguns territórios produtivos do Norte como a antiga Galaecia romana, que incluía parte de Portugal. Tal como os romanos foram deixando os montanheses mais ou menos auto governados, até porque estes montanheses sóbrios eram guerrilheiros que davam trabalho a submeter.

   É neste contexto que se forma o primeiro reino asturiano que ao longo de séculos vai dar origem aos reinos de Leão, Castela, Portugal… que vão reivindicar a memória visigótica e o cristianismo, erguendo a Cruz (in hoc signo vinces) e o apóstolo Santiago, que se há-de transformar em Mata Mouros.
O pai, o rei fundador, é Pelágio das Astúrias, de onde descendem os monarcas destes reinos, entre os quais o nosso, embora o primeiro rei de Portugal seja filho de um francês ou melhor dizendo de um borgonhês, que Borgonha foi uma potência até ao início do Renascimento.
Pelágio venceu os muçulmanos na batalha de Covadonga e fez de Cangas de Ónis a capital do reino rebelde. Quem foi, não se sabe bem. É possível que primeiro tenha sido vassalo do poder islâmico e que se tenha revoltado em 722. Como vassalos do Califado de Córdova foram posteriormente alguns reis e senhores cristãos, embora nem sempre obedientes. Alianças e desavenças eram constantes. Recorde-se por exemplo, séculos mais tarde, D. Afonso Henriques ao tentar conquistar Badalhouce (Badajoz) teve que fugir, mas foi preso e partiu uma perna, porque o seu primo, tão cristão como ele, Fernando de Leão, veio em auxílio dos muçulmanos de Badajoz, ou o mítico Giraldo que conquistou Évora mas se passou para o lado dos muçulmanos, tendo sido morto em Marrocos.



E é a partir do Reino das Astúrias que se inicia a "Reconquista"cristã. Curiosamente uma das regiões menos cristianizadas na época, onde conviviam práticas cristãs (e Roma ou Constantinopla ficavam muito longe) e Toledo era domínio muçulmano), com práticas pagãs de religiões ancestrais.
Covadonga é um lugar místico. Inserida numa área de altas montanhas que descem abruptamente até ao mar é nela que aparece uma Nossa Senhora, como antes já tinha aparecido uma deusa, numa gruta de onde jorra água. Grutas e fontes são sempre símbolos femininos e estão sempre associadas a divindades femininas, desde a Deusa Mãe, que tantas vezes mudou de religião. Acrescentem-se outros elementos misterioso e telúricos como as montanhas, a neve e o nevoeiro que levam os homens a sentir a sua pequenez, o fraco, transitório e fugaz poder e temos todo um ambiente mágico e perturbador, que nos leva ao confronto connosco e com a Natureza e ao prazer dionisíaco da nossa matriz selvagem (de silvis, oposto à civilização) e pagã.
O mito popular tornou-se mito fundador e legitimador dos novos reinos. É constantemente reinterpretado e usado, novamente a partir do século XIX pelo nacionalismo espanhol (contra a fragmentação perturbadora de outros nacionalismos primeiro românticos e depois eficazes, como o catalão ou o basco) e pelo catolicismo ultramontano, contra as correntes ateístas e agnósticas ou reformadoras da nova sociedade industrial, exacerbadas pelo franquismo que venceu a luta entre a “Espanha Vermelha” contra a “Espanha Negra”.
Hoje o turismo e a modernidade reabsorvem todas estas contradições que são aliás inerentes aos mitos. E as montanhas restituem-nos esse ideal de pureza ainda não conspurcada.

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