quarta-feira, 19 de março de 2008

A dama pé- de-cabra.

A dama pé-de-cabra
(adaptação ao português mais ou menos actual)

Dom Diego Lopes era mui bom monteiro (caçador), e estando um dia na sua armada e esperando quando veria o porco (javali), ouviu cantar em muito alta voz uma mulher em cima de uma penha; e ele foi para lá e viu-a ser muito formosa e muito bem vestida, e enamorou-se logo dela muito fortemente e perguntou-lhe quem era; e ela lhe disse que era uma mulher de alta linhagem, e ele lhe disse que pois era mulher de alta linhagem que casaria com ela se ela quisesse, porque ele era senhor daquela terra toda; e ela lhe disse que o faria, se prometesse que nunca se santificasse, e ele lhe outorgou, e ela foi-se logo com ele. E esta dona era muito formosa e mui bem feita em todo o seu corpo salvando que havia um pé forcado, como pé de cabra. E vieram grande tempo e tiveram dois filhos (…)
E quando comiam juntos, Dom Diego Lopez e sua mulher assentava ele a par de si o seu filho, e ela assentava a par de si a filha de outra parte. E um dia foi ele ao monte e matou um porco muito grande e trouxe-o para a sua casa e pô-lo ao pé de si onde estava comendo com a sua mulher e os seus filhos, e lançaram um osso da mesa e vieram a pelejar um alão e uma podenga sobre ele, de tal maneira que a podenga filou o alão na garganta e matou-o. E D. Diego Lopez quando viu isto, teve-o por milagre e benzeu-se e disse: Valha-me Santa Maria, quem nunca viu tal coisa! E a sua mulher, quando o viu benzer-se, lançou mão da filha e do filho, e D. Diego Lopez segurou o filho e não o quis deixar levar; e ela fugiu por uma janela do paço e foi-se para as montanhas de tal modo que nunca mais a viram nem a filha.
In Livro de Linhagens do Conde de D. Pedro, (adaptação )

A mulher é o diabo. Um diabo maior, porque diabo em forma de mulher. Diabo tem a mesma raiz que Deus. É um Deus antigo que foi vencido pelo novo Deus, o Deus bom. Mas que encanta, atrai. A mulher canta, o homem não, é caçador de animais selvagens, de servos quase indómitos da Mãe Natureza. Ela é formosa, ele não precisa de o ser. Ela é sedutora, orgulhosa de viver nas montanhas e nos bosques, lugares não habitados pelos homens que têm receio do que não é humanizado, civilizado. É “rainha”, de linhagem antiga, dum mundo onde os impulsos da natureza são mais fortes, corporizados na beleza insidiosa e na fealdade do pé de cabra, símbolo da liberdade de andar pelas penhas, e dos instintos não domados. O contrato é aparentemente feito de igual para igual, mas o mundo da Natureza impõe que não haja rituais cristãos, civilizados, portanto.
O inimaginável acontece, o caos da natureza irrompe na ordem: a cadela, fêmea, mata o cão, macho, contra a ordem conhecida pois que no mundo dos animais o macho não mata a fêmea muito menos a fêmea o faz. É uma provocação que põe à prova o juramento feito por amor contra os preceitos estabelecidos. Reage D. Diego, que afinal não conseguiu ser eternamente fiel à Deusa da Natureza com quem tinha feito o pacto, pede a protecção de Santa Maria, a sua mãe simbólica.
A dama foge, desaparece sem retorno, em direcção ao bosque, onde ficará encantada com a sua filha que há-de continuar como a mãe, nos bosques. O filho herdará o poder do pai, o castelo e as montarias, a faculdade de tentar dominar a Natureza indomável, a contradição das origens diferentes e refundação de uma linhagem meio humana meio sagrada, algo diabólica e ao mesmo tempo em luta pela fé.
Mas a mãe não há-de ser esquecida e a irmã voltará a aparecer. Como? E a quem?
E D. Diego o que escolherá?

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