sábado, 2 de fevereiro de 2008

Traduções da Bíblia na Idade Média ou que a mulher gire a mó para outro.

Portal da Sé de Évora


Livro das Histórias da Bíblia (de meados do século XIV)

«Das leis que o senhor Deos deu aos judeus no momte Synay per Moyses», retiradas do livro do Deuteronómio. Uma das leis diz o seguinte: «Nam emtrara o çujo ou sovalhados ou cortados os testicolos ou sua natura em a cassa do senhor, nem emtrara manzil e naçido de putanheiro em cassa do senhor ate deçima geraçam». Esta passagem é bastante fiel à da Vulgata, onde se baseou: «non intrabit eunuchus adtritis vel amputatis testiculis et absciso veretro ecclesiam Domini non ingredietur mamzer hoc est de scorto natus in ecclesiam Domini usque ad decimam generationem» (Deut. 23, 2-3). (…) A tradução portuguesa dos Capuchinhos afasta-se significativamente quer de uma, quer de outra, optando o tradutor por termos mais inócuos: «Aquele que se tornou eunuco, por acidente ou por mutilação, não será admitido na assembleia do Senhor. O filho ilegítimo também não será admitido na assembleia do Senhor; nem mesmo a sua décima geração poderá ser ali admitida.»
Outra das leis diz o seguinte: «Nam sera puta das filhas de Isrraael nem putanheiro dos filhos de Israel nem offereçeras merçe de puta nem preço de cam em a cassa do senhor Deos teu porque abominaçam e çugidade he açerqua do senhor Deos teu.» Esta passagem é bastante fiel à da Vulgata: «Non erit meretrix de filiabus Israhel neque scortator de filiis Israhel, non offeres mercedem prostibuli nec pretium canis in domum Domini Dei tui quicquid illud est quod voverint quia abominatio est utrumque apud Dominum Deum tuum non fenerabis fratri tuo ad usuram pecuniam nec fruges nec quamlibet aliam rem» (Deut. 23, 18-19). (...) A tradução portuguesa dos Capuchinhos é bastante mais suave nos termos utilizados: «Não haverá prostituta sagrada entre as filhas de Israel, nem prostituído sagrado entre os filhos de Israel. Não levarás à casa do Senhor, teu Deus, como oferta votiva de qualquer espécie o salário de uma cortesã ou o que receberes em troca de um hierodulo porque, uma e outra coisa, são abominadas pelo Senhor.»
O terceiro contexto ocorre no Livro de Job, capítulo XIX: «Se o meu coraçam foy emganado sobre molher e se assechey aa porta do meu amigo, seja a minha molher putarya de outrem e sobre ela se deytem outros; ca isto he grande maldade e grande aleive; e he fogo que destrue ate o acabamento de todo e que arranca todallas gerações.»
Esta passagem é bastante fiel à da Vulgata: «Si deceptum est cor meum super mulierem et si ad ostium amici mei insidiatus sum scortum sit alteri uxor mea et super illam incurventur alii hoc enim nefas est et iniquitas maxima ignis est usque ad perditionem devorans et omnia eradicans genimina» (Job 31, 9-12). (...) Já na tradução portuguesa dos Capuchinhos, para evitar o termo indecoroso, o tradutor optou por uma metáfora: «Se o meu coração se deixou seduzir por uma mulher e estive à espreita à porta do meu próximo, que a mulher gire a mó para outro e que os estrangeiros a possuam! Porque é um grande crime e uma iniquidade horrenda, fogo que devora até à destruição e que arruinará todos os bens.»

in José Barbosa Machado, O léxico obsceno na prosa medieval portuguesa
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Comentários póstumos.
O que estava em causa na Bíblia não era a prostituição masculina ou feminina nos templos, mas a hipótese de alguém do povo eleito praticar essa actividade, como "puta" ou "cão".
Interessante é também o castigo de um homem olhar para outra mulher, inocentemente enganado pelo coração de outra, sendo casado. Quem sofre o castigo não é ele mas a sua mulher que se irá tornar prostituta de outros, "putaria de outrém" ou como dizem os capuchinhos "que a mulher gire a mó para outro" !!!
Também não se admitem homens incompletos, sem os testículos ou "natura", nem sujos ou sovalhados, nem nascidos de "putanheiros" ou ilegítimos, na versão capuchinha.

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